– Artigo publicado em inglês pelo Projeto para uma Internacional Marxista Revolucionária a 29 de Outubro de 2024 e traduzido pelos camaradas no Brasil –
Há mais de um ano que o mundo assiste, horrorizado e em tempo real, a uma das mais destrutivas e impiedosas campanhas de bombardeamento da história da Faixa de Gaza – um ataque implacável de proporções genocidas. No entanto, a maquinaria de morte e destruição empunhada pelo Estado israelita não só continua, como está a mergulhar em novas e indescritíveis profundezas, ao mesmo tempo que expande o seu âmbito regional, colocando o Médio Oriente à beira do que poderá ser o maior conflito regional das últimas décadas.
Horrores sem fim
De acordo com o número oficial de mortos divulgado pelo Ministério da Saúde de Gaza, o genocídio de Israel em Gaza matou mais de 43.000 palestinianos em 12 meses. No entanto, este número representa provavelmente uma subcontagem muito drástica. Muitos milhares continuam desaparecidos e não estão refletidos nestas estatísticas oficiais. A destruição das instalações de saúde, das redes de comunicação e das infraestruturas rodoviárias dificultou gravemente a elaboração de registos precisos. Este número também não leva em conta o grande e crescente número de vítimas que resultam de causas indiretas, como a doença, a subnutrição e a fome.
Várias organizações – incluindo a Organização Mundial de Saúde, grupos de defesa dos direitos humanos, bem como profissionais de saúde que trabalharam em Gaza – argumentam que o número real de mortos é muito mais elevado do que o relatado. Um estudo recente do “Projeto Custos da Guerra” da Universidade de Brown nos EUA, estima o número de mortos em cerca de 114.000, o que representa cerca de 5% da população de Gaza – o que caracterizam como um “número mínimo de mortes realmente sólido e conservador” – enquanto as estimativas da revista científica “The Lancet” apontam para o número de vítimas já ultrapassou os 180.000 há vários meses.
Entretanto, a Cisjordânia ocupada também sofreu um aumento de ataques mortais por militares israelitas e de ataques de colonos ao longo do último ano, resultando na detenção de cerca de 12.000 palestinianos e na morte de centenas – entre os quais 36 crianças mortas em ataques aéreos e 129 baleadas, a maioria atingida na cabeça ou na parte superior do corpo.
Por muito horrível que seja, o número de mortos é apenas uma parte da barbárie cometida contra o povo palestiniano. Um novo relatório sobre o impacto socioeconómico da guerra, elaborado pela Agência das Nações Unidas para o Desenvolvimento, revela que os indicadores de desenvolvimento humano na Faixa de Gaza caíram para níveis nunca vistos desde a década de 1950 e que seriam necessários 350 anos (!) para que a economia de Gaza voltasse aos níveis anteriores a 7 de outubro de 2023. Quase toda a população de Gaza está a sofrer de elevados níveis de insegurança alimentar, meio milhão de pessoas enfrentam fome. Dezenas de milhares de pessoas sofreram ferimentos que mudaram as suas vidas; Gaza alberga atualmente o maior número de crianças amputadas da história moderna, com uma média de 10 crianças a perderem uma ou ambas as pernas todos os dias.
No que constitui um novo nível de horror e de intensificação desta brutal guerra de extermínio – a que o representante da Palestina à ONU chamou de “genocídio dentro de um genocídio” -, o Norte de Gaza tem sido sujeito a um cerco de uma crueldade espantosa nas últimas três semanas (enquanto as chamadas zonas “seguras” ou “humanitárias” na parte Sul da Faixa continuam também a ser regularmente bombardeadas). Desde 1 de outubro, as forças israelitas têm impedido a entrada de alimentos ou de qualquer tipo de ajuda no Norte de Gaza e sujeitaram a zona a ataques aéreos e a bombardeamentos de artilharia incessantes. O exército israelita intensificou a sua ofensiva terrestre – o terceiro em doze meses – cercando o campo de refugiados de Jabalia, matando centenas de civis e forçando dezenas de milhares a fugir. As famílias deslocadas que se abrigam em edifícios públicos são expulsas sob a mira de armas, para depois esses edifícios serem arrasados ou queimados pelos soldados israelitas. Os palestinianos que fugiram deram relatos arrepiantes desta campanha contínua de assassínio, fome planeada e deslocação forçada: dezenas de corpos estão espalhados pelas ruas, provas de execuções sumárias, os feridos deixados a sangrar e a morrer enquanto as ambulâncias e os esforços de salvamento são deliberadamente bloqueados e até mesmo diretamente atacados. O exército israelita também ataca o que resta do abastecimento de água e das condutas de água, empurrando a população restante para mais perto do limiar da fome e da sede.
A chefe do serviço humanitário da ONU, Joyce Msuya, alertou no sábado que “toda a população do norte de Gaza corre o risco de morrer sob o cerco de Israel”, um dia depois de um grande ataque israelita a Kamal Adwan, o último hospital operacional na zona.
O diretor da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), Philippe Lazzarini, descreveu recentemente a situação: “O cheiro da morte está por todo o lado, pois os corpos são deixados nas estradas ou debaixo dos escombros. As missões para limpar os corpos ou prestar assistência humanitária são negadas. No norte de Gaza, as pessoas estão apenas à espera de morrer. Sentem-se abandonadas, sem esperança e sozinhas. Vivem de uma hora para a outra, temendo a morte a cada segundo”. Apesar destas condições insuportáveis e da ameaça iminente de aniquilação, muitos palestinianos simplesmente não conseguem sair – ou recusam- se a fazê-lo, pois sabem que, uma vez que saiam, nunca mais poderão regressar – uma experiência que ficou gravada na sua história.
Esta estratégia militar parece inspirar-se nos princípios fundamentais do chamado “Plano dos Generais”, um projeto divulgado em setembro por uma associação de oficiais reformados e reservistas israelitas, o que, segundo o Primeiro-Ministro Netanyahu, “faz sentido”. Os principais objetivos do plano são cercar militarmente o Norte de Gaza, cortar a ajuda humanitária e utilizar a fome como alavanca para forçar a evacuação total da área. Qualquer palestiniano que ficasse para trás seria considerado um agente do Hamas e tratado como um alvo legítimo para ser morto. Também conhecido como “Plano Eiland”, tem o nome de Giora Eiland, um major-general reformado e antigo chefe do Conselho de Segurança Nacional de Israel, que o concebeu e resumiu o seu raciocínio brutal já há um ano numa entrevista, afirmando: “Gaza tem de ser completamente destruída: caos terrível, crise humanitária grave, gritos aos céus…”. Isto é acompanhado pelos planos do movimento de colonos e da extrema-direita israelita pretendendo recolonizar Gaza, o que foi discutido abertamente numa conferência realizada em 21 de outubro, na qual participaram membros do Knesset (o parlamento israelita) e vários membros do Likud, bem como ministros do governo, e que contou com a proteção do exército e da polícia.
No entanto, a viabilidade prática de um plano para submeter cerca de 400.000 pessoas ao terrível ultimato de “partir ou morrer” é outra questão completamente diferente. Para além do apego inabalável dos palestinianos à sua terra, é questionável durante quanto tempo as forças de ocupação israelitas podem manter o seu domínio no norte de Gaza sem sofrer cada vez mais baixas por ataques do Hamas e de outros grupos armados palestinianos que continuam a operar na zona. O exército israelita também enfrenta cada vez mais limites militares, logísticos e humanos para manter as operações em Gaza, dadas as exigências simultâneas da intensificação da guerra com o Líbano – que exige um destacamento significativo de tropas – bem como o potencial para uma escalada da guerra a um nível mais amplo.
Ofensiva israelita expande-se no Líbano
Apesar das afirmações públicas em contrário, mais de um ano após o início da guerra, o governo de Netanyahu ainda não atingiu nenhum dos seus objetivos declarados em Gaza. Por exemplo, menos de 7% dos reféns israelitas libertados foram recuperados pela força militar. As celebrações triunfalistas da classe dominante israelita sobre os assassinatos dos líderes do Hamas, Ismail Haniyeh e, mais recentemente, Yahya Sinwar, não podem obscurecer a realidade de que o Hamas, embora tenha sofrido perdas militares significativas em homens e material, está longe de ter sido “eliminado”. A afirmação do ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant, de que o Hamas está efetivamente desmantelado enquanto força de combate em Gaza – repetida na semana passada pelo secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken – não corresponde aos fatos. Além de esta narrativa contradizer claramente a propaganda do Estado israelita, que continua a culpar o Hamas por praticamente todos os civis palestinianos massacrados pelas bombas das Forças de Defesa de Israel (FDI), o grupo mantém objetivamente a capacidade e a vontade de lutar. Num contexto praticamente desprovido de forças de resistência de esquerda, a espiral de atrocidades do regime israelita também ajudará provavelmente o Hamas a reconstituir as suas fileiras entre uma nova geração de palestinianos. Politicamente, os resultados da última pesquisa realizada pelo Centro Palestiniano por Pesquisa e Politica (Palestinian Center for Policy and Survey Research) no início de setembro mostram que, embora o apoio ao Hamas tenha diminuído moderadamente, continua a ser o mais elevado em comparação com todas as outras facções palestinianas, tanto em Gaza como na Cisjordânia ocupada.
Confrontado com um impasse estratégico, Netanyahu viu-se sob pressão das facções mais extremistas e ultranacionalistas do seu próprio gabinete para intensificar a guerra. Estava também desesperado por desviar a atenção das suas próprias vulnerabilidades políticas e as críticas internas crescentes à sua condução da guerra. Estas críticas culminaram, no início de setembro, em protestos históricos em todo o país e numa greve geral de curta duração, convocada pela federação sindical Histadrut, que cedeu à pressão maciça vinda de baixo – na qual participaram trabalhadores judeus, árabes e de outras origens, exigindo um “acordo já”.
Encorajado pelos fatores acima referidos, e sentindo uma oportunidade na evidente fraqueza da atual administração Joe Biden nos EUA, Netanyahu optou por uma corrida imprudente e precipitada, acelerando a guerra no Líbano. A detonação mortal de pagers e aparelhos de comunicação armadilhados pelo Estado terrorista de Israel em todo o Líbano, em meados de setembro, serviu apenas de prelúdio às “Flechas do Norte”, uma ofensiva militar israelita brutal e mais vasta tanto aérea quanto terrestre contra o Líbano. As afirmações do regime israelita de que esta nova ofensiva tem como único alvo o Hezbollah são comprovadamente falsas. Tem atacado indiscriminadamente hospitais, zonas residenciais, postos fronteiriços, equipas da Cruz Vermelha e da defesa civil, agricultores, pastores, jornalistas e até forças de “manutenção da paz” da ONU. As infra-estruturas críticas – água, eletricidade, comunicações – foram deliberadamente atacadas, juntamente com edifícios governamentais, marcos culturais e locais históricos. Até agora, a ofensiva matou mais de 2600 pessoas e deslocou cerca de 1,2 milhões, obrigando mais de um em cada cinco libaneses a abandonar as suas casas.
Em parte, a investida do exército israelita no Líbano parece basear-se na ideia de aterrorizar e minar a base social de apoio do Hezbollah. Alimentar as chamas sectárias entre a população do Líbano pode muito bem ser uma parte intencional desta estratégia, uma vez que os libaneses predominantemente muçulmanos xiitas são obrigados a fugir do sul para o interior, uma área maioritariamente de muçulmanos sunitas, drusas e cristãs. Por exemplo, em meados de outubro, os militares israelitas atingiram a pequena aldeia de Aito, no norte, no coração cristão do país, longe das principais áreas de influência do Hezbollah no sul e no leste do Líbano, mas onde eram acolhidas as pessoas deslocadas internamente provenientes de zonas maioritariamente xiitas. Vinte e duas pessoas foram mortas no bombardeamento.
O assassinato de Hassan Nasrallah, líder de alto nível e de longa data do Hezbollah, no final de setembro, juntamente com a eliminação da maior parte dos principais comandantes militares da organização, foi sem dúvida um golpe duro para o Hezbollah.
Estas ações, juntamente com os “ataques com pagers e walkie-talkies”, também expuseram graves falhas de segurança na estrutura do grupo. Do ponto de vista político, essas ações proporcionaram uma “injeção de prestígio” a Netanyahu, permitindo-lhe melhorar temporariamente a sua posição a nível interno. O seu partido, o Likud, saiu de baixas históricas para liderar as sondagens nacionais.
No entanto, já são visíveis os limites dessa tendência. Sondagens recentes mostram também que a maioria da população de Israel quer uma votação antecipada – e que a coligação de Netanyahu seria incapaz de formar um governo em eleições hipotéticas, com um dos dois parceiros de coligação de extrema-direita, enfrentando a perda total dos seus assentos parlamentares. E no campo de batalha, o Hezbollah continua a ser um adversário formidável. Em comparação com a guerra de 2006 contra Israel, a organização melhorou drasticamente as suas capacidades de combate, em grande parte devido aos anos de experiência de luta ao lado das forças do regime reacionário de Assad na Síria. O Hezbollah possui um vasto arsenal de mísseis e foguetes guiados com precisão; embora parte desse arsenal tenha sido degradado em recentes ataques aéreos israelitas, continua a ser capaz de atingir praticamente qualquer alvo em Israel – como foi recentemente sublinhado com um ataque de um drone que visou a luxuosa mansão privada de Netanyahu na cidade costeira de Cesareia. Além disso, o grupo pode contar com dezenas de milhares de combatentes experientes, endurecidos por uma guerra prolongada. Embora os media divirjam quanto ao número exato de baixas militares que Israel tem sofrido no Líbano, é consensual que as perdas dos últimos dias foram as mais pesadas até agora infligidas pelo Hezbollah, que está travando uma luta feroz no território – ao mesmo tempo que lança foguetes do outro lado da fronteira, alguns dos quais resultaram na morte de civis. A ideia inicial e declarada das FDI de uma “operação concentrada e limitada” no Líbano pode facilmente transformar-se no seu oposto.
Qualquer crença de que Israel abriu esta nova frente – à custa do povo do Líbano – para garantir “segurança” e “paz” duradouras à sua própria população é uma ilusão cruel que em breve se desmoronará sob o peso da realidade. Isto para não falar do fardo que a guerra e as despesas militares em espiral colocam na economia de Israel, o que, como observou o jornal “The Hindu”, “obriga a escolhas difíceis entre programas sociais e militares”. Isto irá exacerbar as tensões sociais e aprofundar as contradições no seio da sociedade israelita.
Exército israelita bombardeia o Irão
Tragicamente, todo o potencial destrutivo desse conflito ainda pode se revelar, pois a dinâmica agora iniciada corre o risco de arrastá-lo para algo muito maior. O que o regime israelita buscava, mas não conseguiu garantir por meio dos Acordos de Abraão – ou seja, uma mudança de longo prazo no correlação de forças regionais a seu favor em relação ao Irão e aos grupos apoiados pelo Irão, juntamente com a marginalização da questão palestiniana e a normalização e o fortalecimento de seu regime de ocupação – agora está tentando alcançar por meio de uma campanha de morte e destruição. Essa lógica leva o governo de Netanyahu ao caminho de um confronto com Teerão.
À medida que o governo genocida de Telavive tem multiplicado as suas provocações – bombardeou o Iémen, a Síria, o Líbano e Gaza, tudo num espaço de 24 horas em setembro – o regime iraniano tem procurado manter uma estratégia de escalada “controlada” e “calculada”, caminhando numa linha ténue entre a postura de líder do “eixo de resistência” contra o regime israelita e o evitar conscientemente ações que possam desencadear uma guerra em grande escala. Esta cautela não vem de uma posição de força, mas de um receio das consequências políticas, sociais, económicas e militares que um tal cenário poderia acarretar, especialmente porque, nos últimos anos, tem enfrentado erupções periódicas de descontentamento interno em massa.
No entanto, o lançamento pelo Irão de 200 mísseis balísticos contra Israel, na sequência do assassinato de Nasrallah, que matou um civil (um homem palestiniano na cidade de Jericó, na Cisjordânia), foi imediatamente explorado pelos oficiais israelitas como pretexto para ameaçar com retaliações punitivas. Na sequência disso, o Pentágono enviou o seu mais avançado sistema de defesa antimíssil para Israel, acompanhado por cerca de 100 pessoas para o operar. Este foi o primeiro destacamento formal de “botas no chão” dos EUA desde o início do genocídio em Gaza e um “exemplo operacional do apoio férreo dos Estados Unidos à defesa de Israel”, segundo o Secretário da Defesa dos EUA, Lloyd J Austin.
Considerado como uma medida defensiva, o ataque israelita, orquestrado em conjunto com Washington, ocorreu a 26 de outubro e representou praticamente uma ofensiva de escalada. Visou fábricas de mísseis e drones iranianos, bem como defesas aéreas. Embora as instalações nucleares e petrolíferas – alvos publicamente contestados pela administração Biden – tenham sido poupadas, permanece incerto se se seguirão outros ataques. Mesmo por si só, este primeiro ataque militar israelita abertamente reconhecido ao Irão tem o potencial perigoso de desencadear uma reação em cadeia mais ampla.
A dança da hipocrisia do imperialismo
As tímidas tentativas da Casa Branca para evitar um conflito total com o Irão, defendendo ataques aéreos relativamente “limitados”, combinadas com a sua ênfase renovada na necessidade de um cessar-fogo na sequência do assassinato de Yahya Sinwar, escondem mal o papel instrumental que o imperialismo estadunidense desempenhou ao longo do último ano na preparação desta situação explosiva e na viabilização material, política e diplomática do genocídio em Gaza. Novos dados da agência de monitorização da Al Jazeera, a Sanad, expõem a extensão impressionante do envolvimento estadunidense e britânico nas operações militares de Israel entre outubro de 2023 e outubro de 2024. Documenta nada menos que 6.000 voos militares sobre a região – uma média de 16 por dia – incluindo 1.200 voos de carga que entregam armas a Israel, juntamente com missões de reconhecimento, reabastecimento aéreo e outros apoios.
No entanto, as alegadas “restrições” da administração Biden ao ataque de Israel ao Irão, a sua capitalização da morte de Sinwar para defender um cessar-fogo renovado (mesmo que o Primeiro-Ministro israelita tenha deixado bem claro que não era esse o seu ponto de vista), bem como as suas ameaças, em grande parte inconsequentes, de congelar a ajuda militar se o regime israelita não levantasse as restrições à ajuda humanitária em Gaza no prazo de 30 dias. Tudo isto revela as verdadeiras ansiedades entre a classe dominante dos EUA. Estes esforços hesitantes para travar as manobras de guerra mais extremas de Netanyahu não são motivados por considerações morais, mas sim pela indignação pública em massa e pela reação negativa contra as ações do regime israelita, cálculos eleitorais cínicos (uma sondagem recente mostrou que os árabes americanos favorecem ligeiramente Trump em relação a Harris) e pelo espectro de uma desestabilização muito maior da região.
Washington está certamente receoso de se envolver numa guerra em grande escala com o Irão, sabendo que isso poderia inflamar ainda mais o sentimento anti-americano e causar estragos nos mercados petrolíferos e na economia global em geral. Preocupado com a intensificação da sua rivalidade estratégica com a China, a classe dominante política dos EUA – tanto democratas como republicanos – preferiria reduzir a sua presença no Médio Oriente a aprofundá-la ainda mais. No entanto, paradoxalmente, se um tal conflito eclodisse, o imperialismo estadunidense passaria provavelmente para o modo reativo, compelido a aumentar o seu apoio ao regime israelita por receio de que qualquer demonstração de fraqueza pudesse encorajar os rivais regionais e globais. No contexto da “Nova Guerra Fria” (isto é, a batalha pela hegemonia mundial entre as duas principais superpotências, EUA e China), qualquer que seja o presidente que ocupe a Casa Branca favorece objetivamente um enfraquecimento do Irão e das potências imperialistas a ele associadas, China e Rússia.
Em todo o caso, os atuais gestos da administração estadunidense não são sinal de qualquer mudança significativa na política dos EUA. O apoio de Washington a Israel continua profundamente enraizado em imperativos geoestratégicos, que não podem ser alterados apenas pela retórica. Só movimentos de grande escala vindos de baixo, incluindo grandes desenvolvimentos da luta de classes, poderiam exercer a pressão de massas necessária para romper essa aliança enraizada.
Assim, embora Biden possa ocasionalmente dizer que há demasiadas vítimas civis, continua a armar Israel até aos dentes. Da mesma forma, o primeiro-ministro britânico Keir Starmer afirma que “o mundo não vai tolerar mais desculpas de Israel” – o mesmo Starmer que uma vez justificou o direito de Israel de cortar a água e a eletricidade de Gaza.
O primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, ataca o regime indiano de Narendra Modi pelas suas execuções extrajudiciais em território estrangeiro, mas mantém um silêncio cúmplice quando Israel leva a cabo ações semelhantes em Gaza, no Líbano ou no Irão. Modi, por seu lado, fala de “diplomacia de paz” enquanto apoia o governo de Netanyahu através de negócios de armas envolvendo empresas indianas, facilitando o envio de trabalhadores indianos para Israel e abstendo-se em relação a resoluções da ONU que apelam a um cessar-fogo ou condenam a ocupação e os crimes de guerra de Israel. O presidente turco Erdoğan pode protestar contra os bombardeamentos de Israel, mas na mesma semana ordena mais de 40 ataques aéreos no norte e leste da Síria, matando dezenas de civis. Quanto a Macron, um ex-funcionário francês citado no Politico descreve a sua abordagem vacilante: “Quando está a falar com os países emergentes, é pró-palestiniano; e quando fala com Netanyahu, é tudo sobre a segurança de Israel”. A sua recente mudança para uma retórica mais forte contra algumas das políticas de Netanyahu parece coincidir com a invasão do Líbano por Israel, um país que o imperialismo francês continua a ver como parte do seu quintal preservado.
Esta hipocrisia descarada põe a nu a falência moral dos líderes capitalistas globais de todos os quadrantes. A sua indignação selectiva revela que as condenações da violência não são nada mais do que instrumentos de conveniência enquanto o massacre continua. O fim deste massacre não virá dos corredores do poder, mas sim de uma resistência generalizada e organizada à escala internacional, forçando uma ruptura no sistema que permite e facilita estes crimes.
Parar o genocídio, parar a máquina de morte do Estado israelita – Lutar contra todo o sistema através de ações de massas
O povo palestiniano, juntamente com todos os trabalhadores e oprimidos que vivem no Líbano e em toda a região, precisam da nossa solidariedade inabalável. Temos de apelar à cessação imediata da violência sangrenta do regime israelita em toda a região e à retirada total das suas forças de ocupação do Líbano, de Gaza e da Cisjordânia ocupada. Os EUA e a maioria dos líderes ocidentais defendem um cessar-fogo centrado na libertação dos reféns israelitas ainda detidos em Gaza. No entanto, não só permanecem indiferentes ao destino dos milhares de prisioneiros palestinianos que definham nas prisões israelitas, como também apoiam o gabinete de guerra de Netanyahu, que tem sabotado metodicamente todas as oportunidades para um cessar-fogo, ao mesmo tempo que explora insensivelmente a situação dos reféns para aumentar a sua agenda sangrenta. A recente interpelação de Netanyahu pelas famílias enlutadas dos reféns durante o seu discurso num comício de comemoração das vítimas do 7 de outubro em Jerusalém é um sinal seguro da crescente indignação pública face a estas manobras cínicas.
É evidente que nenhum cessar-fogo genuíno e duradouro pode ter lugar em condições de cerco e ocupação militar. Assim sendo, defendemos o direito inalienável das massas no Líbano e nos Territórios Palestinianos Ocupados de resistir à agressão militar contínua de Israel, inclusive armadas. Uma resistência armada enraizada e vinculada às massas e controlada democraticamente pela população, procurando unir os trabalhadores e os oprimidos através das diversas confissões e comunidades nacionais, e integrando as exigências de libertação nacional com as exigências de uma política económica radical e de uma política de desenvolvimento e transformação social, seria a melhor forma de o conseguir.
A resistência contra este genocídio tem de visar as suas raízes fundamentais. Isto significa travar uma luta política intransigente não só contra o colonialismo e o racismo do Estado israelita, mas também contra o sistema capitalista e imperialista que os sustenta. Esta luta deve ser acompanhada pela construção de organizações socialistas independentes capazes de organizar a classe trabalhadora e todos os oprimidos em torno desta agenda. Deve traçar um rumo que se afaste das capitulações de partidos pró-capitalistas corruptos como a Fatah, mas também de forças islamistas de direita como o Hamas e o Hezbollah. Embora, nas condições atuais, estas forças tenham um apoio significativo, os socialistas têm de abordar as causas profundas da opressão nacional sem sucumbir a métodos políticos reacionários que, em última análise, servem para consolidar as relações de poder existentes.
Não pode haver libertação para alguns sem libertação para todos: para ser bem sucedida, a luta tem de ser anti-sectária, internacionalista, feminista, anti-imperialista, anti-capitalista e dar prioridade à participação democrática das massas – qualidades que, infelizmente, faltam a estas organizações. Além disso, os seus ataques indiscriminados contra civis israelitas e a sua colaboração com o regime despótico iraniano – o mesmo regime que esmagou brutalmente o movimento “Mulher, Vida, Liberdade” – ajudam a reforçar a propaganda ensanguentada de Netanyahu e do bando de carniceiros que lançam o terror sobre Gaza e o Líbano.
A nossa luta deve visar não só a ofensiva militar do Estado israelita, mas todos os seus facilitadores globais, todas as potências imperialistas cujos interesses particulares são parte integrante do derramamento de sangue que agora envolve o Oriente Médio, e todos os regimes autoritários e opressivos da região – incluindo o Irão e a Turquia – que se preocupam mais com a sua própria riqueza e sobrevivência política do que com o destino dos palestinianos.
Em conjunto, a cumplicidade efectiva dos regimes árabes ao permitirem as ações bárbaras de Israel em Gaza e a perpetuação da violência estatal e da miséria a nível interno podem alimentar uma mistura potente com potencial para desencadear novas revoltas em toda a região. Em outubro, o regime egípcio de al-Sissi aumentou os preços dos combustíveis pela terceira vez este ano, como parte de “reformas estruturais” mais amplas impostas a mando do FMI – depois de ter cortado os subsídios ao pão em junho. Estas políticas apenas aprofundam a raiva de uma população que já sofre de graves dificuldades económicas, ao mesmo tempo que vê o seu governo agir como um facilitador de fato do estrangulamento do povo palestiniano. “A segunda primavera Árabe está a chegar, sem dúvida, mas todos os fatores continuam presentes: pobreza, corrupção, desemprego, bloqueio político e tirania”, afirmou Oraib Al Rantawi, diretor do Centro de Estudos Políticos Al-Quds, com sede em Amã. Embora as ruas do Médio Oriente e do Norte de África possam parecer atualmente dominadas por sentimentos de desmoralização e impotência, os horríveis acontecimentos que se desenrolam em Gaza e no Líbano continuam a funcionar como catalisadores de uma acumulação molecular, mas constante, de raiva e radicalização em massa – uma acumulação que pode eclodir da forma mais explosiva e, se for organizada de forma eficaz, tornar-se uma poderosa alavanca para travar a máquina de morte em espiral do regime israelita e dos seus apoiantes imperialistas.
Entretanto, por todo o mundo, embora com flutuações e graus de intensidade variáveis, milhões de pessoas ergueram-se em desafio, manifestando-se, boicotando, fazendo greves, ocupando. As ações dos estudantes universitários e dos trabalhadores – por vezes reforçadas pelo apoio dos sindicatos, incluindo através de greves, como aconteceu com o sindicato United Automobile Workers (UAW) (Trabalhadores de Automóveis Unidos) nos EUA – exigiram que as universidades cortassem todos os laços com o Estado israelita. Estas ações expuseram ainda mais as mentiras da classe dominante – que geralmente respondeu com repressão policial violenta contra os acampamentos – e popularizaram a questão do controle democrático dos estudantes e dos trabalhadores sobre a gestão e a utilização das finanças das suas universidades.
Só em Londres, 300.000 pessoas inundaram as ruas na sequência da invasão do Líbano. No final de setembro, foi organizada no Estado espanhol uma greve geral de 24 horas “contra o genocídio e a ocupação da Palestina”, a pedido de mais de 200 sindicatos e ONGs, acompanhada de protestos em massa em todo o país. Este é o caminho a seguir: para alcançar os resultados mais tangíveis, temos de atacar o coração dos especuladores de guerra e dos Estados imperialistas, visando a sua funcionalidade e os seus lucros, e dar nova vida ao apelo original dos sindicatos palestinianos ao movimento operário mundial, apelando à solidariedade contra o genocídio em Gaza, a ofensiva contra o Líbano e outros escalada da guerra regional.
Desde os estivadores gregos que bloquearam recentemente o envio de armas para Israel, aos trabalhadores da Google e da Microsoft que se revoltaram contra a parceria das suas empresas com o governo e o exército israelita, aos trabalhadores dos hospitais em Paris que protestaram em solidariedade com os seus colegas sob bloqueio em Gaza, aos activistas franceses do movimento “Stop Arming Israel” que panfletaram em várias fábricas de armas francesas que apoiam o genocídio israelita para estabelecer ligações com os trabalhadores da indústria, aos apelos públicos dos sindicatos franceses CGT STMicroelectronics e CGT Thales para que as suas respectivas empresas deixem de fazer negócios com Israel… estes inúmeros atos de solidariedade da classe trabalhadora devem ser ampliados em todos os lugares possíveis, especialmente em sectores estratégicos que são centrais para o funcionamento da máquina de guerra israelita. Por mais inspiradoras que sejam estas ações, muito mais poderia e deveria ser feito pelos sindicatos e organizações de trabalhadores em todo o mundo para mobilizar ativamente os seus membros, expor a cumplicidade dos seus governos nas atrocidades em curso e libertar todo o poder da classe trabalhadora através de uma ação de massas corajosa e coordenada.
Esta luta deve também estender-se aos trabalhadores e aos jovens dentro do Estado israelita, exortando-os a usar o seu poder e a alavancar o seu trabalho para entupir a máquina de guerra e enfrentar o que é objetivamente – mesmo que ainda não conscientemente reconhecido – um inimigo comum. Saudamos e somos totalmente solidários com todos aqueles que, dentro da Linha Verde, estão a dar passos corajosos para se oporem ao regime de Netanyahu e a todo o espectro de forças políticas que apoiam esta guerra de extermínio contra os palestinianos.
Incontestavelmente, grandes contradições complicam este processo. Por exemplo, a curta greve geral de 2 de setembro aconteceu não por causa, mas apesar da liderança do Histadrut, cujo presidente nacionalista de direita, Bar-David, em dezembro de 2023, assinou, de forma repugnante, um projétil para bombardear a Faixa de Gaza com a inscrição: “O povo de Israel vive. Saudações do Histadrut e dos trabalhadores de Israel”. A greve foi também apoiada por uma parte da classe capitalista israelita, em nome dos seus próprios interesses. Quanto ao movimento “Deal Now” (Acordo Já), refletiu uma consciência profundamente conflituosa e contraditória, e o seu apoio foi significativamente prejudicado pelo ataque ao Líbano. Não obstante estes desafios, tanto a greve como os protestos do “Deal Now” revelaram um vislumbre do papel que a classe trabalhadora israelita poderia desempenhar dentro da Linha Verde para ajudar na luta contra o genocídio em Gaza, a guerra no Líbano, a violência dos colonos e dos militares na Cisjordânia ocupada, bem como a política do regime israelita em geral. É uma tarefa vital dos socialistas promover ativamente este processo e desmascarar a retórica enganadora da segurança e da autodefesa que a classe dominante israelita explora para disfarçar uma agenda que apenas conduz a uma maior insegurança, austeridade e derramamento de sangue para todos os envolvidos.
Em última análise, a luta pela libertação da Palestina é inseparável da luta global mais ampla contra o capitalismo – um sistema movido pelo lucro privado que gera guerras, devastação ecológica e desigualdade obscena. Neste sistema, as tecnologias mais avançadas da humanidade são utilizadas não para elevar a vida, mas para a aniquilar a uma escala genocida, enquanto os dispositivos mais avançados permitem a transmissão em direto dos atos de violência mais primitivos e desumanizantes para milhões de pessoas. A urgência de uma transformação revolucionária nunca foi tão clara. Derrubar este sistema destrutivo é essencial para recuperar a imensa riqueza e os recursos da sociedade, incluindo os que estão agora a ser canalizados para o massacre em massa e a ruína de Gaza. Só através de um programa socialista que lute pela propriedade e controlo coletivos, e que defenda os direitos de todas as comunidades nacionais e religiosas à plena igualdade e autodeterminação, poderemos lançar as bases para um futuro em que a paz, a segurança e a prosperidade estejam garantidas para todas as pessoas.