– Artigo publicado originalmente em inglês pelo Projeto para uma Internacional Marxista Revolucionária a 3 de Outubro de 2025 –
Para os palestinianos em Gaza, na Cisjordânia e dentro das fronteiras de 1948, juntamente com milhões de pessoas em todo o mundo, a Flotilha Global Sumud (Perseverança), a caminho de Gaza, foi uma centelha de esperança na escuridão insuportável imposta pela ocupação e pelos seus apoiantes imperialistas.
A tentativa da flotilha de quebrar o cerco desumano a Gaza e abrir um corredor humanitário para fornecer ajuda — alimentos, medicamentos, leite para bebés, entre outros — necessária para enfrentar a fome imposta pelo regime de ocupação, é acima de tudo um desafio dirigido a cada pessoa.
Um desafio que deve ser enfrentado através da mobilização do poder invencível que os biliões de pessoas da classe trabalhadora possuem, para pôr fim ao genocídio e a todo o sistema capitalista assassino, do qual este é o rosto mais sincero.
Reações imediatas
Quase ao mesmo tempo que se soube que as Forças de Ocupação Israelitas estavam a intercetar de forma violenta (e ilegal) os primeiros barcos da flotilha e a raptar as pessoas heroicas que tentavam expressar a sua solidariedade com os palestinianos, eclodiram protestos indignados em todo o mundo.
Foram ocupadas estações de comboio, milhares marcharam até ao porto de Génova. Em Buenos Aires, Cidade do México, Colômbia, Istambul, Túnis, Malásia (ver foto principal) e em muitas capitais europeias, manifestantes concentraram-se nos centros das cidades. Pode ver-se um breve vídeo de vários protestos aqui. Os sindicatos italianos convocaram uma greve geral e, agora, também o fizeram sindicatos no Estado espanhol.
Em Marrocos, a indignação coincidiu com o desenvolvimento dos protestos da Geração Z. Há cinco dias e noites que jovens saem à rua para protestar contra a corrupção governamental e, em particular, contra as enormes quantias de dinheiro gastas na construção de novos estádios de futebol em preparação para a Taça das Nações Africanas. Em resposta aos cânticos “Os estádios estão aqui, mas onde estão os hospitais?”, a polícia respondeu matando duas pessoas e prendendo centenas.
Flotilha Global Sumud
Os barcos começaram a zarpar desde o final de agosto a partir do Estado espanhol, Itália, Tunísia e outros locais, acabando por se unir e formar um enorme comboio de mais de 40 embarcações, transportando 497 pessoas de 46 países. A bordo estavam figuras conhecidas como Greta Thunberg, bem como deputados de partidos de esquerda, trabalhadores humanitários, ativistas pela Palestina, artistas, médicos, jornalistas e outros. Muitos mais, demasiados para listar, expressaram o seu apoio — entre eles Francesca Albanese, Relatora Especial das Nações Unidas para os territórios palestinianos ocupados. 28.000 pessoas candidataram-se a participar na flotilha.
A dimensão da flotilha foi um aspeto importante desta missão. Tentativas anteriores (como Conscience, Madleen e Handala) foram menores, muitas vezes compostas por barcos isolados que não conseguiram romper o bloqueio. Esta foi a maior tentativa coordenada de sempre para quebrar o cerco ilegal a Gaza e abrir um corredor humanitário. Alguns cínicos aproveitaram todas as oportunidades para sugerir que a missão era fútil, que era “performativa”. Mas, para os palestinianos e muitos outros ativistas, foi uma tentativa real de romper o cerco — uma ação mais séria do que as flotilhas anteriores.
A flotilha estava prevista para chegar à costa de Gaza na manhã de 2 de outubro.
Ataques em curso
A travessia do Mediterrâneo já era, por si só, cheia de perigos. A Flotilha teve de enfrentar uma grande tempestade, mas à medida que avançava, foi interrompida pelas forças israelitas, que recorreram a drones e outros meios de assédio. À medida que se aproximava de Gaza, já noite cerrada, navios da marinha israelita começaram a atacar os barcos com drones, balas de borracha e canhões de água. Um a um, foram abordados. Centenas de pessoas foram presas e transferidas para Israel, de onde, segundo o governo, serão deportadas. No entanto, todas estão agora a ser levadas para a mais infame prisão de tortura israelita — a prisão de Ketziot, situada no deserto do Neguev.
Para além do genocídio e de outros crimes contra a humanidade já cometidos pelo regime israelita, este é agora também culpado de pirataria e rapto — os ataques à flotilha ocorreram em águas internacionais. Mesmo que tivessem ocorrido em águas israelitas, o direito internacional exige passagem segura para qualquer missão humanitária.
Cumplicidade internacional
É difícil acreditar que estes ataques não tenham sido discutidos durante a visita de Netanyahu à Casa Branca. Certamente, nenhuma tentativa foi feita para travar Netanyahu, apesar do chamado plano de “paz” Trump/Netanyahu. Pelo contrário, é evidente que Trump e o imperialismo deram luz verde a esta intensificação do genocídio. Na mesma noite em que a flotilha foi atacada, o castigo coletivo imposto ao povo palestiniano prosseguiu, com o bombardeamento ainda mais intenso da cidade de Gaza.
Também é evidente que houve coordenação internacional para permitir que as forças de ocupação israelitas atacassem a flotilha. A primeira-ministra italiana de extrema-direita, Giorgia Meloni, que sob enorme pressão popular tinha destacado uma fragata da marinha para navegar com a flotilha, retirou-a apenas algumas horas antes dos ataques, alegando que se tratava de uma provocação destinada a “fazer explodir o acordo de cessar-fogo”. O ministro dos Negócios Estrangeiros italiano admitiu, na televisão italiana, que tinha discutido a abordagem com o seu homólogo israelita. Muitos ativistas acreditam, de resto, que a fragata nunca teve a intenção de ajudar a flotilha, mas sim de neutralizar a indignação popular em Itália e, por fim, sabotar a missão.
Plano Trump/Netanyahu
Os palestinianos suspiram naturalmente de alívio perante qualquer plano genuíno que possa pôr fim à chuva incessante de fogo que cai sobre as suas casas e lhes permita começar a reconstruir as suas vidas e a fazer o luto pelas suas perdas. Mas a mais recente proposta de Trump e Netanyahu para “acabar com a guerra”, elaborada sem qualquer contributo dos próprios palestinianos, não é um plano desse tipo.
Apresentado na Casa Branca numa conferência de imprensa conjunta entre Trump e Netanyahu, o plano estava repleto de retórica bombástica sobre “cidades milagrosas” e “dias maravilhosos”, em que ninguém pode acreditar seriamente. Na realidade, o plano não passa de um ultimato colonial: ou os palestinianos aceitam uma rendição total, ou enfrentam uma nova aniquilação às mãos de Israel, com o pleno apoio dos Estados Unidos.
Até a encenação do plano é imperialista, impondo um regime sob o controlo de Trump e de um vice-rei colonial — o ex-primeiro-ministro britânico e criminoso de guerra Tony Blair — uma figura emblemática do odiado imperialismo britânico, que colonizou a Palestina e mais tarde a entregou ao projeto sionista de colonização de povoamento.
As promessas de fornecer ajuda, organizar a reconstrução e libertar prisioneiros foram todas transformadas em armas pelos EUA e por Israel para impor a subordinação dos palestinianos ao Estado sionista, aos Estados Unidos e às ditaduras árabes vizinhas — todas elas temendo, acima de tudo, qualquer movimento independente e revolucionário das massas palestinianas.
Regimes árabes cúmplices
As ditaduras árabes e a Turquia, assim como os países ocidentais que tão recentemente declararam o reconhecimento de “um Estado palestiniano”, apoiam agora fervorosamente o plano Trump/Netanyahu que, nas palavras de Netanyahu, significa que “não haverá nenhum Estado palestiniano a oeste do rio Jordão”.
Diplomatas do Qatar, do Egito e da Turquia estão a exercer enorme pressão sobre o Hamas para que aceite o plano. Embora alguns setores do Hamas o apoiem, desde que Trump garanta a sua implementação, outros exigem alterações que eliminem o apelo ao desarmamento e à expulsão dos seus membros.
Os diplomatas defendem que este é o melhor acordo possível para a Palestina nas atuais circunstâncias. Embora haja indicações de que o Hamas acabará por rejeitar o acordo, fá-lo-á com a consciência de que essa rejeição será usada como justificação para um novo ciclo de bombardeamentos, fome e expulsões em massa — tudo isto enquanto se tenta culpar as próprias vítimas pela sua “intransigência”.
Radicalização e politização
O projeto colonial de Trump e Netanyahu já alimentou a raiva de quem apoia a luta palestiniana em todo o mundo. Este ataque à Flotilha apenas aprofundará essa indignação.
Como afirmou Ruth Coppinger, deputada do Socialist Party, no parlamento irlandês esta semana – Gaza tornou-se a questão mais politizadora desta geração, tal como o Vietname foi para gerações anteriores. De facto, nos últimos dois anos, as ações de solidariedade desenvolveram-se e intensificaram-se – desde os campus universitários ao bloqueio de navios, e agora com apelos a greves e boicotes gerais e internacionais.
Isto ficou evidente na enorme manifestação pró-Palestina realizada em Berlim no fim de semana passado. Finalmente, o partido Die Linke apoiou e mobilizou para ela. Embora isso tenha sido bem acolhido pelos organizadores palestinianos e pelos participantes, o sentimento dominante foi de raiva e desilusão pelo facto de o Die Linke ter demorado demasiado tempo a reconhecer o genocídio e a apoiar e construir uma resistência contra ele. Ficou claro que as pessoas não os julgarão pela sua presença ou palavras nessa manifestação, mas sim pelas ações nos dias e semanas seguintes — esperando que o Die Linke se erga de forma real contra o genocídio, pela libertação da Palestina e contra qualquer criminalização ou repressão do movimento de solidariedade com a Palestina na Alemanha. Em muitos locais, os militantes desse movimento já se deslocaram muito mais à esquerda do que os partidos da esquerda tradicional e adotaram métodos de luta mais radicais.
Com o início dos ataques à Flotilha, espalham-se os protestos
A maior delegação a bordo da Flotilha era turca, com 56 ativistas — algo natural, dada a longa tradição de apoio da classe trabalhadora turca à causa palestiniana e também devido ao célebre incidente do Mavi Marmara, quando forças israelitas atacaram a flotilha de 2010, matando dez dos seus participantes. Com a notícia de que pelo menos 37 ativistas turcos tinham sido presos, até o governo de Erdogan se viu obrigado a protestar, declarando: “As políticas fascistas e militaristas do governo genocida de Netanyahu — que condenou Gaza à fome — não se limitam aos palestinianos.” Mais importante ainda, durante a noite, organizaram-se protestos diante das embaixadas dos EUA e de Israel em Istambul e noutras cidades do país, com multidões a agitar bandeiras palestinianas e a entoar “Fim ao genocídio”.
Um elevado nível de solidariedade com a luta palestiniana também se fez sentir na Tunísia. Quando a flotilha partiu do país realizaram-se manifestações, e assim que surgiram as notícias do ataque, os tunisinos saíram imediatamente às ruas em protesto.
Na América do Sul, em diferentes fusos horários, o centro de Buenos Aires encheu-se de manifestantes a protestar contra o ataque à flotilha. Também no Brasil, na Colômbia e no México ocorreram manifestações.
Os governos da Grécia, Irlanda, Malásia, Reino Unido e África do Sul enviaram a Israel protestos diplomáticos tímidos e insípidos, sendo que este último chegou mesmo a declarar que “não estava em confronto com Israel”.
Estes exemplos de inação diplomática contrastam fortemente com a decisão do presidente da Colômbia, Gustavo Petro, que expulsou de imediato os diplomatas israelitas do país e cancelou o acordo de livre comércio com Israel.
Inspiradora foi também a explosão de protestos por toda a Europa, poucas horas após o ataque. Em particular, destacou-se a classe trabalhadora italiana. À medida que a noite avançava, chegavam relatos de manifestações em todo o país, combinando palavras de ordem pela libertação da Palestina com apelos à demissão de Meloni. O lema unificador “Bloquear tudo” foi claramente inspirado nos protestos anti-Macron da semana anterior em França; e, no dia seguinte, nas manifestações contra a austeridade em Paris, a juventude empunhava faixas com os dizeres “De Gaza a Paris – viva a resistência ao imperialismo”. Estes exemplos não só demonstram a força do internacionalismo, como também revelam uma crescente consciência de que todas as formas de opressão estão interligadas dentro do sistema capitalista.
Génova mostra o caminho
Na linha da frente da luta estão novamente os trabalhadores e a juventude de Génova, juntamente com o seu sindicato, a Unione Sindacale di Base (USB). Nos dias anteriores, já tinham organizado o bloqueio de navios que transportavam mercadorias para Israel nos portos de Génova, Livorno, Ravenna, Taranto e Trieste. Avisaram que organizariam uma grande greve nacional se a Flotilha fosse atacada e, fiéis à sua palavra, poucas horas depois milhares de pessoas marchavam sobre os cais de Génova, com o apelo a uma greve nacional — e possivelmente geral. Como afirmam no seu apelo à greve:
“Escolhemos o nosso lado: resistência, justiça e liberdade para o povo da Palestina.”
O simples facto de que, mesmo antes do ataque à Flotilha, o governo italiano já tinha sido forçado a fazer concessões ao movimento mostra o poder da ação de massas. É necessário intensificar estas ações para forçar os governos a mudar de posição e agir para travar o genocídio.
Se a situação em Gaza já foi um enorme fator de radicalização para a classe trabalhadora e a juventude em muitos países, o avanço e o ataque à Flotilha marcarão um ponto de viragem para o movimento internacional de solidariedade.
Mesmo que a probabilidade de a corajosa tentativa de quebrar o bloqueio ter êxito fosse reduzida, ela atraiu enorme atenção internacional e inspirou uma nova e mais determinada vaga de solidariedade global. Nesse sentido, já foi um grande sucesso.
A Flotilha e o movimento de solidariedade que inspirou expuseram ainda mais o enorme fosso entre a consciência da classe trabalhadora em todo o mundo — que instintivamente se coloca ao lado dos que sofrem sob o jugo do imperialismo — e os governos que servem os interesses das elites dominantes. Isso foi claramente expresso pelos participantes da Flotilha, que sublinharam que foram pessoas comuns, não os governos, que se viram obrigadas a tentar abrir um corredor humanitário para Gaza, uma vez que os Estados se recusaram a fazê-lo.
A libertação do povo palestiniano e a criação de um Estado palestiniano não serão alcançadas através de negociações entre potências imperialistas, nem impostas pela força militar, nem sob o patrocínio dos regimes árabes, que em todas as fases sabotarão a criação de um Estado palestiniano.
Só através da auto-organização política da classe trabalhadora e da juventude palestiniana, em ação conjunta com a classe trabalhadora organizada do Médio Oriente e do Norte de África, será possível enfrentar o imperialismo e os regimes capitalistas — bem como aqueles que traíram a luta palestiniana ao longo da sua história — e construir um verdadeiro movimento revolucionário pela libertação da Palestina.
É por isso que a solidariedade internacional é absolutamente crucial e precisa de ser reforçada. A máquina de guerra imperialista-sionista, responsável pelo genocídio, tem de ser travada para que o povo palestiniano possa realizar a sua própria libertação. A sua vitória seria uma vitória para a classe trabalhadora e para os oprimidos de todo o mundo.
A reação inspiradora em todo o mundo aos ataques contra a Flotilha, e as tremendas iniciativas dos sindicatos em Itália e Espanha, devem servir para alargar a necessidade de greves e bloqueios em toda a parte. O apelo dos estivadores italianos a expandir o bloqueio por toda a Europa deve ser assumido. Tal como em França e em Itália, as manifestações e greves devem intensificar-se para forçar os governos a cancelar acordos de armamento, romper laços comerciais e diplomáticos, e derrubar os governos cúmplices do genocídio.
Voltar aos portos e aos locais de trabalho
Mas em muitas partes do mundo, os sindicatos falham — ou até se recusam — a organizar este tipo de ações. São necessárias assembleias de ativistas solidários para traçar uma estratégia que imponha o boicote a Israel, com protestos diante de empresas que produzam bens destinados à máquina de guerra israelita e com reuniões nos locais de trabalho, em portos e fábricas de armamento, convidando ativistas palestinianos e sindicalistas italianos a explicar porque é urgente agir.
O movimento de solidariedade com a Palestina tem sido, de facto, uma das mais amplas expressões de resistência global dos últimos anos, e tem potencial para se tornar ainda mais importante. Está a levar muitos à conclusão de que o sistema — o capitalismo e o imperialismo — é a raiz de muitos dos nossos problemas.
Os seus efeitos podem ser duradouros se conseguir parar a máquina de guerra israelita — e mais ainda se conseguir enraizar-se numa oposição coerente e consequente a todas as formas de opressão e exploração, afirmando a necessidade da derrubada revolucionária do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo.