– Este texto foi publicado por completo em papel numa brochura, que dispomos a quem pedir. É agora publicado em formato digital, por partes. A parte 4 está disponível aqui. Uma versão curta foi publicada no jornal número 5 (Abril/Maio de 2024) da Alternativa Socialista Internacional em Portugal –
Há 50 anos, a irrupção política dos trabalhadores e da juventude após o golpe militar de 25 de Abril pôs fim ao fascismo e ao colonialismo e originou uma revolução social. A ocupação de casas, terras e empresas, a constituição de comissões de moradores, trabalhadores e soldados, órgãos democráticos da classe trabalhadora, a implementação de serviços públicos universais e a nacionalização da maior parte da economia fizeram da Revolução portuguesa a situação na Europa do pós-Guerra na qual os trabalhadores mais perto estiveram de tomar o poder. Apesar das enormes conquistas políticas, económicas e sociais, na ausência de um partido revolucionário com influência de massas, a revolução foi interrompida pela contra-revolução de Novembro de 1975. A democracia capitalista instaurada é uma democracia que não entra nos locais de trabalho, ensino e residência e que vem servindo os mesmos capitalistas que beneficiaram de décadas de fascismo. Vem revertendo as conquistas da revolução e mostra-se hoje incapaz de garantir Habitação, Saúde e Educação de qualidade para todos, de impedir a catástrofe climática ou a proliferação de guerras pelo mundo. Como em 1974 e 1975, o socialismo é hoje uma necessidade objetiva face aos problemas concretos da barbárie capitalista e a Revolução portuguesa contém importantes lições para quem quer transformar a sociedade. A quinta e última parte deste texto trata do rescaldo da revolução e das lições a tirar por quem quer levar a classe trabalhadora a tomar o poder e a livrar o mundo da exploração e opressão capitalista.
Rescaldo da Revolução
A Constituição foi aprovada a 2 de Abril de 1976, com os votos favoráveis de todos (PS, PPD, PCP, MDP, UDP e ADIM), exceto do CDS que votou contra. A Constituição garantia as conquistas da revolução, incluindo a Reforma Agrária e a proibição de privatizações, e afirmava o objetivo do socialismo, refletindo a real relação de forças durante o período de vigência da Constituinte. No entanto, o Estado permaneceu capitalista, a Constituição consagrou a democracia burguesa, em que os trabalhadores elegem os seus opressores, e não a democracia popular dos órgãos de poder proletário. Na realidade a Constituição não impediu, e continua a não impedir, a reversão das conquistas nela consagradas em 1976, algo que só a luta de classes pode determinar.
A 25 de Abril de 1976, as primeiras eleições legislativas tiveram um resultado semelhante ao das eleições para a Constituinte, uma vitória do PS sem maioria parlamentar, que tornou Mário Soares no primeiro-ministro do I Governo Constitucional. A 27 de Junho de 1976, as primeiras eleições presidenciais deram a vitória a Ramalho Eanes, o ‘herói’ do 25 de Novembro, com o apoio de PS, PPD, CDS e MRPP (um partido maoísta que se pôs do lado do PS e da direita contra o PCP e o resto da esquerda) e 62% dos votos. Otelo, apoiado por parte da extrema-esquerda e figura importante da revolução, ficou em segundo com 16% e foi mesmo o mais votado no distrito de Setúbal. O candidato do PCP ficou em quarto com 8%, atrás de Pinheiro de Azevedo.
As vitórias do período revolucionário deram frutos por anos e décadas. Foi criado o Serviço Nacional de Saúde e foram expandidos o ensino universal e a segurança social. Os níveis de educação, vacinação e mortalidade infantil, entre outros, melhoraram astronomicamente. As conquistas de férias, indemnizações e tempo livre foram mantidas, bem como o direito ao divórcio e à independência das mulheres e as liberdades de expressão e organização democrática. As ocupações de casas deram origem a um período de rendas baixas (por medo dos senhorios de terem as suas propriedades vazias ocupadas) e a legislação de proteção de inquilinos, bem como à quase extinção dos bairros de lata. A economia fortemente nacionalizada permitiu proteger os trabalhadores e atrasar a implantação do neoliberalismo, com a sua promoção da concorrência e dos despedimentos. Não menos importante, a revolução criou tradições de luta que permitiram preservar as suas conquistas durante largos anos.
No entanto, o regime emergente é fruto da contra-revolução. Nenhuma reforma é garantida em capitalismo e muito do que se conquistou foi perdido ou está em risco. Os órgãos democráticos nos locais de ensino e trabalho foram perdendo expressão. O rácio entre massa salarial e rendimento nacional, que era 49% em 1970, chegou aos 64% em 1975 mas já estava de volta aos 49% em 1979. O regime coletivista da terra consagrado pela Reforma Agrária acabou formalmente em 1988 com a devolução das herdades aos anteriores proprietários. Mário Soares, que em 1975 garantia defender a nacionalização das grandes empresas nacionais, dirigiu na década de 1980 o processo de devolução dos bancos às famílias banqueiras do fascismo. As empresas nacionalizadas foram fechadas ou privatizadas nas décadas que se seguiram à revolução, condição para Portugal entrar na CEE (agora UE) em 1985.
Hoje, Portugal tem a economia completamente liberalizada, com um modelo de atração de investimento estrangeiro baseado em baixos salários e em benefícios fiscais. O Estado é completamente subserviente à UE e não tem controlo sobre os setores essenciais como distribuição, energia e banca, que têm tido lucros recorde. As empresas de saúde e ensino têm crescido à custa dos serviços públicos, tornando o acesso mais desigual. Fruto da falta de propriedade pública, o Estado não tem controlo sobre o planeamento ambiental e florestal, que leva a incêndios frequentes, nem sobre a Habitação, que está a preços completamente inacessíveis para a classe trabalhadora e boa parte das camadas médias. O colonialismo acabou com a revolução, mas o racismo de que o capital beneficia é constante na sociedade portuguesa. A igualdade entre homens e mulheres progrediu significativamente e ficou consagrada na lei, mas está longe de ser realidade.
Lições da Revolução portuguesa
Em 1974 e 1975, ficou demonstrado que em situações de guerra e de opressão nacional e colonial, a luta dos oprimidos de um lado e do outro do conflito está intimamente ligada. Foi a luta de libertação nacional que levou à queda do fascismo, e foi a luta revolucionária dos trabalhadores em Portugal que garantiu definitivamente o fim da guerra e a libertação e independência das colónias. Verificou-se também que é a classe trabalhadora que através da sua luta garante a conquista dos direitos democráticos contra as diferentes fações da burguesia, e que ao fazê-lo vai mais longe, passando a lutar pelo controlo social da produção e pela revolução socialista, mostrando a pertinência da teoria da revolução permanente na época contemporânea.
Para além disso, nesse período revolucionário, os trabalhadores e a juventude em Portugal mostraram que podem pôr tudo em causa, melhorar as suas vidas e decidir sobre a vida coletiva. Puderam ter democracia no local de trabalho, nas escolas e nos bairros. Puderam trabalhar com prazer e sentido de utilidade. Tudo o que ganhámos foi graças à organização e ação direta das massas e, em particular, às formas de poder proletário que construíram. As melhorias nas condições de Habitação nas décadas que se seguiram à revolução devem-se às ocupações de casas. Os direitos democráticos, laborais e sociais devem-se às greves, aos saneamentos dos patrões fascistas, às ocupações e ao controlo operário de indústrias, terras e serviços. Foram as comissões democráticas nas escolas e os cursos de alfabetização por voluntários que ganharam a extensão do ensino universal. Foram os médicos e enfermeiros nas comissões democráticas de hospitais e na criação de clínicas populares que impuseram o que viria a ser o Serviço Nacional de Saúde.
No entanto, os trabalhadores nunca tomaram o poder do Estado para romper definitivamente com o capitalismo. Apesar de o Estado ter tido dirigentes de esquerda (como Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho), ele nunca deixou de ser um Estado capitalista, com uma estrutura burguesa preparada para manter a ordem capitalista, como se verificou. Na situação de crise económica mundial de 1974 e 1975, e depois da humilhante derrota dos EUA no Vietname, cremos que era possível ao proletariado tomar o poder sem sofrer num país europeu uma intervenção direta do imperialismo estrangeiro, como se viu pela sua passividade antes do Verão Quente de 1975. Sem o apoio do capital estrangeiro e sem apoio massivo à reação, a Direita não teria recursos para levar a cabo a contra-revolução. O triunfo da revolução socialista em Portugal poderia ter influenciado diretamente a classe trabalhadora no Estado Espanhol e na Grécia, também a sair de ditaduras de direita no mesmo período. Poderia ter levado a revoluções bem sucedidas também nos países da África a sair do colonialismo e na América Latina sob ditaduras de direita e nos restantes países da Europa ocidental, que tinham passado por importantes convulsões sociais nos anos anteriores, com destaque para a greve revolucionária em França em maio de 1968. Essas vitórias podiam ter representado um golpe mortal para as ditaduras stalinistas, sob a forma de revolução política que devolvesse o poder aos trabalhadores e não sob a forma de regresso ao capitalismo. Mas também representaria perdas importantes para o imperialismo dos EUA, pondo em risco o capitalismo em todo o mundo ocidental. Na melhor das hipóteses, poderíamos viver hoje num mundo em que ninguém ganha com guerras e os povos cooperam, em que a economia é planificada para servir as necessidades sociais e ambientais, evitando a catástrofe climática, em que as pessoas trabalham com prazer e decidem conjuntamente como trabalhar e viver melhor.
Tal não aconteceu. Não por falta de mobilização dos trabalhadores, mas por falta de direção política que os levasse a tomar o poder. Uma lição que podemos tirar é que a classe dominante teve tempo de aprender como impedir a revolução socialista por meios democráticos, ao contrário do que fez no Chile, pouco antes, em 1973. O conceito de transição democrática, em vez de revolução, foi aplicado nas transições de ditadura para democracia no Estado Espanhol, na Grécia e nos países da América Latina nos anos e décadas que se seguiram à Revolução portuguesa. Nomeadamente, a classe dominante aprendeu que pode usar instrumentos da democracia burguesa como eleições livres para a Assembleia Constituinte para deturpar a vontade das massas, levando-as a legitimar os adversários do poder proletário. O fator chave com que o capitalismo pôde contar para impedir a revolução socialista por meios democráticos foi o reformismo das direções dos partidos de trabalhadores, tendo tido também como ajuda a rejeição massiva dos modelos autoritários stalinistas.
A Revolução portuguesa mostrou que a existência de partidos de massas de trabalhadores não é nem condição necessária para a irrupção de uma situação revolucionária, nem condição suficiente para a levar a uma conclusão socialista, quando estes partidos estão tomados por concepções etapistas e por falta de confiança no poder dos trabalhadores. De facto, é impressionante o quanto o proletariado conseguiu ganhar sem uma direção e programa revolucionários. O proletariado esteve dividido politicamente e nenhum dos dois partidos com influência de massas entre os trabalhadores (PS e PCP), nem nenhum dos restantes dirigentes políticos e militares com influência de massas, promoveu a união das comissões de moradores, de trabalhadores e de soldados em formas de poder proletário mais alargado, como sovietes. Estes poderiam opor um poder proletário forte ao fraco Estado burguês, abrindo a possibilidade de resolver a crise de duplo poder pela tomada de poder pelos trabalhadores, em particular a seguir ao 11 de Março, quando a relação de forças foi mais favorável.
As organizações revolucionárias, da chamada extrema-esquerda, apesar de influentes nalgumas importantes lutas, locais de trabalho e comissões de moradores e trabalhadores, não tinham conseguido construir-se e preparar-se previamente com implantação suficiente entre a classe trabalhadora para atingir uma influência de massas no momento da irrupção de uma situação revolucionária. Só se organizaram com o intuito de desafiar o Estado e o poder político, por exemplo com a aposta na formação de comissões de soldados, numa fase tardia em que a contra-revolução já levava vantagem. Para além disso, não tiveram uma orientação sistemática para as bases do PS e do PCP, os trabalhadores que, para além de exercer e organizar as ocupações e o poder popular, entravam nestes partidos e lhes confiavam a liderança dos sindicatos e comissões. Por isso, essas organizações nunca desafiaram os dirigentes reformistas nem obtiveram uma influência de massas e não conseguiram impedir que o capitalismo se salvasse. Por exemplo, uma orientação sistemática às bases do PS permitiria expor que o caminho para o socialismo em liberdade é a promoção e coordenação dos órgãos de poder dos trabalhadores, não bastando a confiança numa Assembleia Constituinte, num modelo de sociedade estrangeira ou num qualquer dirigente militar, governamental ou parlamentar. Assim, faltou aos trabalhadores o instrumento para a tomada de poder.
Para levar a classe trabalhadora ao poder, um partido revolucionário tem a aprender com a Revolução portuguesa, entre outras coisas, a importância de defender as liberdades democráticas, avançar a luta socialista pelo controlo social da produção e organizar o poder proletário para a tomada de poder político. Mas também a importância de ter influência política entre os soldados, trabalhadores e camponeses em armas, que foram decisivos para os destinos da revolução nos momentos cruciais, e a necessidade de neutralizar o medo da pequena-burguesia, sobretudo rural, em relação à perda de propriedade privada e, se possível, de ganhar o seu apoio para o lado do proletariado. Isso podia ter sido feito reconhecendo o direito à pequena propriedade privada e apoiando-a com ajuda técnica e financeira, mas procurando integrá-la nos objetivos da economia planificada, mostrando aos pequenos proprietários que podem obter maior produtividade com a partilha de trabalho e de métodos e instrumentos mais avançados.
Finalmente, devemos confiar nos trabalhadores para gerir os seus assuntos em comum e transformar a sociedade, não só no que diz respeito a condições laborais, mas a todos os aspetos da vida coletiva, para chegar a uma sociedade sem exploração nem opressão. Hoje, como há 50 anos, as contradições do capitalismo engendram crises, catástrofes, guerras e explosões revolucionárias, e a transformação socialista da sociedade permanece a forma de nos livrarmos da barbárie.