– Artigo publicado pela Liberdade Socialismo e Revolução, a secção da ASI no Brasil –
O Supremo Tribunal Federal iniciou nesta madrugada (22 de Setembro de 2023) a votação que retira do Código Penal o aborto até à 12ª semana de gestação. Estamos próximos do 28 de setembro, dia da luta latino-americana pela legalização do aborto, e nós nunca estivemos tão perto de mudar parte da história de milhões de brasileiras que podem gestar!
Na semana passada, como resultado da luta protagonizada por movimentos feministas, a Suprema Corte do México aprovou a descriminalização do aborto. Essa é mais uma entre outras experiências no mundo todo, de lutas vitoriosas pela garantia e ampliação de direitos reprodutivos de mulheres e pessoas que gestam. Há também retrocessos, como nos Estados Unidos, revelando uma polarização social que junto ao ataque a direitos das pessoas trans revela uma disputa sobre a autonomia dos corpos dentro do sistema capitalista.
Ainda que seja necessário considerar as particularidades do Brasil, o conservadorismo das elites e políticos, este não é um debate descolado do crescimento da nova direita no mundo, nem descolado dos levantes na América Latina em torno desta pauta. São conquistas e retrocessos no mesmo período que moldam a atual situação de consciência no que chamamos de Era da Desordem.
A luta em defesa do direito ao aborto nos diferentes países demonstra que não há espaço vazio na consciência, que se não lutamos perderemos nossos direitos mas também que essa luta não estará completamente ganha dentro do capitalismo. Por isso, é preciso antecipar eventos e organizar coletivamente preparando nossas fileiras para atuar nas mobilizações e avançar em conquistas e não permitir passos atrás no que já conseguimos.
O contexto brasileiro
Os dados do Brasil são alarmantes em relação a outros países. A OMS estima quase 1 milhão de abortos ilegais praticados por ano no Brasil. Isso significa que a legalização aqui implicaria diretamente naqueles que lucram com a proibição. O acesso a clínicas clandestinas de alto padrão ou mesmo a viagem a outras países para efetuar um aborto seguro, só pode ser acessado pela classe alta. O acesso a pílulas são por meio do tráfico ilegal e significam mais riscos. Por isso, a prática feita de forma ilegal é a principal causa de morte e afeta os mais pobres.
O aborto é uma realidade. A última Pesquisa Nacional do Aborto (2021) publicada no início deste ano, constatou que 1 em cada 7 mulheres de até 40 anos realizou aborto pelo menos uma vez, sendo que 52% tinha menos de 19 anos quando realizaram. Segundo a pesquisa, a proporção é maior entre indígenas e negras.
Ou seja, apesar de prevalecer o debate moral e religioso quando se fala em interrupção da gravidez, a criminalização e proibição é, sobretudo, um debate sobre classe, determinando qual poderá realizar o procedimento com segurança e dignidade, e qual mulher realiza o procedimento de forma traumática, insegura, em alguns casos sendo presa ou morta.
O Brasil é considerado um dos mais restritos para a aquisição do Misoprostol, recomendado pela OMS como segura até 12 semanas de gestação. O acesso a esse medicamento é muito difícil até mesmo para médicos. Além dele, recomenda-se o uso de Mifepristona, que quase não chega ao país. A combinação dos dois é indicada como um método seguro, eficaz, que diminui os efeitos colaterais e a necessidade de ir ao hospital terminar o procedimento. Além de ser bem menos agressivo, a possibilidade de ser administrado em casa, garante uma maior autonomia, menor exposição e possibilita um procedimento menos traumático.
Nem presa, nem morta
As algemas foram colocadas enquanto ela sangrava na maca do hospital. Foram três dias assim: presa e sangrando. O estado de saúde era grave, quando os policiais militares entraram na unidade hospitalar e decretaram a prisão. Quem denunciou foi o próprio médico ao desconfiar que a paciente tivesse feito um aborto em casa. Uma mulher jovem, preta, pobre e brasileira, que tentou interromper a gestação, e foi levada às pressas ao Sistema Único de Saúde (SUS), depois de sofrer uma hemorragia. O pedido era de socorro, mas a paciente teve sua intimidade violada pelo profissional que deveria protegê-la. Esse caso é real, ocorreu em Minas Gerais, no ano de 2020.
Esse exemplo trágico mostra que a criminalização tem sido escopo para encarcerar e processar pessoas pobres, indígenas e negras. Além do estigma da proibição e o mau atendimento da saúde levarem muitas à morte. A mesma pesquisa citada mostra que há um aumento de processos contra suspeitos de provocarem aborto. Os dados mostraram que desde 2022, a quantidade de processos judiciais registrados contra mulheres que praticaram o aborto vem crescendo, em média, são mais de uma ação desse tipo por dia. De 2021 foram 136 casos, em 2022 para 464 casos, o aumento foi de 340%, três vezes mais. A média mensal de 2021, foi 11,3 processos; em 2022 – 38,6; e este ano já está em 41,6, somente de janeiro a maio.
A cada cinco mulheres que realizam clandestinamente, duas são levadas aos hospitais. Os 151 mil internamentos por curetagem pós-aborto representam 90% dos casos que chegaram às unidades hospitalares, e em um ano resultaram em 50 mortes. Em 2021, 151 mil mulheres foram internadas no Brasil por situações de aborto (espontâneo, induzido, incompleto ou legal) e levadas a fazer uma curetagem uterina, procedimento que já é considerado desfasado há pelo menos dez anos no mundo e fortemente desaconselhado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 2012.
A ADPF 442 – uma chance de incidir na luta
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é um recurso jurídico para alterar o código penal. O texto da ADPF 442 foi elaborado pelo PSOL em conjunto com o instituto ANIS, que teve sua porta-voz bastante conhecida e inclusive ameaçada e perseguida pelos bolsonaristas, a Debora Diniz. Nela contém argumentações que questionam as contradições sobre as condicionantes que penalizam aquelas que realizam e facilitam o aborto, e portanto, defende a descriminalização do aborto. A ADPF 442 pretende descriminalizar o aborto voluntário até o terceiro mês.
Esta ADPF foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal em 2017, e, em 2018 foi colocada para discussão. Nós estivemos em Brasília naquele ano junto ao PSOL e à CSP-Conlutas. Lá fizemos um ato em favor da aprovação, junto à Campanha/Movimento Nacional Nem Presa Nem Morta. Desde então, a ADPF 442 está sob a tutela da Ministra da Justiça, Rosa Weber, que deu nesta madrugada o seu voto. Com isso, o processo se abre, o próximo voto pode acontecer a qualquer momento ou pode demorar até 2025.
Ainda não podemos ter por completo uma avaliação do impacto disto. Mas com todas as argumentações que já temos, sabemos que descriminalizar é um grande passo e não sabemos nesses dois anos que teremos de prazo como ou quando ela irá ressurgir.
A votação completa pode durar muito tempo, mas é muito importante que esta ministra coloque em pauta, já que é favorável. Como consequência, estamos vendo um processo de lutas pela descriminalização do aborto que pode levar a lutas se seguir a onda verde da América Latina. O diferencial é que se tratará de uma conquista e não apenas de barrar um retrocesso ameaçado pelos conservadores, uma luta ganha é uma consciência política avançada para a nossa classe.
O Supremo Tribunal Federal é tão injusto como o sistema que o sustenta
Nós não temos ilusões na justiça burguesa e sobretudo esse setor que vem nos últimos anos sendo apontado pela vanguarda da luta fracassada como “os salvadores da pátria”. Devemos saber reconhecer a oportunidade de luta sem esquecer que a pressão nas ruas é a melhor garantia da resposta que queremos. A vitória do movimento indígena dentro da corte sobre a negação do ataque a demarcações de terras deveu-se exclusivamente às incessantes mobilizações do movimento nos últimos quase três anos.
Este mesmo supremo dança conforme a música do interesse dos de lá de cima, lembrando que em 2018 condenaram Lula para que não pudesse ser candidato e em 2021 inocentam Lula para ser candidato novamente. Este mesmo STF está com as mãos sujas de sangue e não confiamos nele para o futuro de milhões de pessoas que gestam. Vamos à luta! Devemos exigir a aprovação da ADPF442 juntamente com a legalização do aborto!
Defendemos uma luta que chegue a mais camadas de cada vez. A nossa tarefa é apontar para a massificação das lutas, pautando um movimento construído de baixo para cima, construir um movimento independente do governo e confiar no potencial da classe trabalhadora.
Aborto legal ou descriminalizado? Armadilhas dos movimentos
Nós sempre levantámos a bandeira da legalização do aborto, queremos aborto legal e seguro dentro do serviço público de saúde ou como bem gritaram as argentinas “aborto legal, no hospital”. Lutaremos por um Estado verdadeiramente laico. Pelo arquivamento de todos os processos que criminalizam pessoas que abortaram. Pela investigação e punição às equipes de saúde médica que denunciaram pacientes que fizeram aborto. Por uma saúde de qualidade, 100% pública, gratuita e universal. Educação sexual nas escolas com inclusão da diversidade de género. Acesso a métodos contraceptivos gratuitos. Acesso livre a pílulas abortivas com conhecimento seguro do seu uso, produzido pelo Estado e livre da indústria farmacêutica.
Não recuaremos quanto a isto em nenhuma palavra de ordem. Também sabemos o caminho para isso: a organização coletiva e a luta. Podemos utilizar a institucionalidade a nosso favor, quando possível, como é o caso da ADPF 442. Mas o movimento precisa de ter independência, autonomia, e não ser subordinado à luta institucional.
Esse é um elemento de diferença com outros setores, que mesmo que tenham interesse em conquistar o direito ao aborto, subordinam a luta à institucionalidade e são capazes de frear e recuar na luta se essa ameaçar o governo e sua aliança com centrão e a direita na busca da falsa ideia de governabilidade e estabilidade. Somos parte do setor que irá atuar para escancarar a oportunidade de luta que se abre, nenhum passo atrás! Que o Brasil se una à onda verde que arrancou mais direitos na América Latina!