Como a Revolução derrubou o Apartheid na África do Sul

Por Paul Moorhouse, Socialist Alternative Scotland (secção da ASI na Escócia)

– Artigo publicado originalmente em inglês pela Socialist Alternative (secção da ASI em Inglaterra, País de Gales e Escócia) –

Como é que o regime de apartheid da África do Sul foi derrubado? Neste artigo, um participante na luta pela libertação negra na África do Sul e organizador Marxista na época reconta essa história, tirando lições para os dias de hoje.

No início da década de 1990, o regime do apartheid, liderado pelo racista Partido Nacional (NP), foi forçado a libertar Nelson Mandela da prisão, a legalizar o Congresso Nacional Africano (ANC ) e a negociar o governo da maioria negra.

Argumenta-se frequentemente que isso aconteceu devido a sanções e pressões diplomáticas por parte das potências capitalistas, ou devido às campanhas de bombardeamento do Mkhonto We Sizwe (MK – “Lança da Nação”), o braço armado do Congresso Nacional Africano (ANC).

Na realidade, o regime somente foi forçado a fazer estas concessões após duas décadas de luta de massa dos trabalhadores e da juventude dentro da África do Sul. Esta revolta revolucionária da maioria da classe trabalhadora negra significou que já não era mais possível a classe capitalista continuar a governar por repressão armada, apoiando-se apenas no privilégio social e económico de uma minoria branca.

Em parte, isso deu-se por mudanças demográficas. O crescimento da população negra africana significou que os brancos diminuíram de 20% da população em 1946 para 13% em 1990. Mas, fundamentalmente, a mudança foi imposta ao PN pela maioria da classe trabalhadora negra, que construiu poderosas organizações políticas e industriais de luta, através das quais estabeleceu e exerceu o seu poder económico e social para resistir à exploração de classe e à opressão nacional.

Raízes do apartheid

No início dos anos 1970, a discriminação racial dominava todos os cantos da sociedade. No local de trabalho, a maioria dos empregos qualificados eram “reservados” para brancos por lei, ou em casos excepcionais, aos trabalhadores “de cor” ou asiáticos. A segregação foi legalmente aplicada em todas as áreas da vida – desde a habitação e a educação, até ao acesso às praias e aos bancos de parques.

O ANC e outros partidos políticos negros foram banidos. Tornou-se ilegal publicar – e até mesmo possuir – imagens de Mandela. Os sindicatos negros eram ilegais e a Lei segregacionista das Áreas de Agrupamento significava que os “não-brancos” não tinham o direito de viver, ou mesmo de viajar, em áreas urbanas sem um “passe” oficial. Tudo isto foi violentamente aplicado pela polícia branca armada, apoiada por espiões e torturadores do “BOSS” orwelliano (Bureau of State Security).

A reserva de emprego, as leis de passagem, as Áreas de Agrupamento (zonas brancas e negras impostas) e o sistema de trabalho migrante prenderam os trabalhadores negros, especialmente os africanos, a empregos inseguros, mal remunerados e não qualificados, perpetuando um sistema racializado de mão-de-obra barata e de superexploração.

Tudo isto foi de facto desenvolvido pelo imperialismo Britânico, que colonizou violentamente o continente para saquear o ouro e outras riquezas minerais da África do Sul conquistadas pela guerra dos Bôeres (1899-1902). Após a Rebelião Rand em 1922, levada a cabo pelos trabalhadores mineiros brancos, as autoridades coloniais foram mais longe ao tentar dividir e policiar a força de trabalho segundo critérios raciais.

A revolta da classe trabalhadora negra

No boom do capitalismo que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, o centro de gravidade da economia da África do Sul passou das indústrias extractivas para a indústria transformadora. Isto tornou a classe dominante cada vez mais dependente da mão-de-obra negra residente, qualificada e semi-qualificada (em vez de migrante e não qualificada). Perante uma crise económica inflacionária, os trabalhadores sentiram o seu poder e exerceram-no para defender os seus interesses.

Em 1973, 10,000 trabalhadores nas áreas têxtil, química e outras indústrias em Durban iniciaram greves ilegais, conseguindo aumentos salariais na maioria dos casos. O Governo do Partido Nacional foi forçado a legalizar greves dos trabalhadores negros, mas os sindicatos continuaram a ser ilegais. No entanto, os trabalhadores negros começaram a construir sindicatos democráticos independentes e, em 1979, quando finalmente lhes foi concedido um certo grau de legalidade, a recém-formada Federação dos Sindicatos Sul-Africanos (FOSATU) tinha 54,000 membros.

Entretanto, em Junho de 1976, centenas de milhares de jovens do município de Soweto organizaram uma revolta, que surgiu de um boicote às escolas em protesto contra o ensino forçado em Africâner (a língua dos brancos mais associados ao Partido Nacional e ao apartheid). Apesar de ter sido reprimida de forma sangrenta, com centenas de manifestantes mortos pela polícia, esta ação estabeleceu uma tradição de luta juvenil, que incluiu boicotes prolongados, organizações juvenis revolucionárias e incêndios organizados de escolas que persistiram, com altos e baixos, durante duas décadas. O movimento juvenil foi reforçado pelo poder crescente dos sindicatos, tal como as lutas comunitárias.

Inúmeras batalhas sublinharam isto, como a resistência de uma década por parte da comunidade de Crossroads de 60.000 “ocupantes ilegais” face aos esforços do Estado e de vigilantes armados para desalojar suas casas fora da Cidade do Cabo. Em 1985, só o estrategicamente importante Sindicato Nacional dos Mineiros (NUM) tinha 110.000 membros. No final daquele ano, a maioria dos sindicatos uniram-se para formar o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (COSATU), totalizando quase meio milhão de trabalhadores.

No congresso de fundação da COSATU, o seu presidente, Elijah Barayi, membro do NUM, declarou: “Damos ao Presidente Botha seis meses para abolir as leis de passagem, que nos impedem de trabalhar onde queremos. Se ele não o fizer, pegaremos todos os passes dos negros e os queimaremos.” Diante desse prazo, essas leis desapareceram magicamente do estatuto.

Cada vez mais, as organizações de jovens, comunidades e trabalhadores associaram a luta contra o racismo e a pobreza à necessidade de mudança socialista. Um slogan popular do movimento na época era “apartheid e capitalismo: dois lados da mesma moeda sangrenta”.

Barayi disse ao congresso que “COSATU irá governar este país”. Os trabalhadores estavam a construir um movimento com potencial para fazer exatamente isso. Em muitas comunidades, havia elementos daquilo que os marxistas chamam de “poder duplo”, no qual um novo poder apoiado na maioria da classe trabalhadora coexiste de forma desconfortável ao lado do Estado capitalista.

Alexandra (um município nos arredores de Joanesburgo) caiu nas mãos do Comité de Ação de Alexandra (AAC), presidido pelo líder dos trabalhadores metalúrgicos, Moses Mayekiso. O AAC organizou a defesa da comunidade contra o Estado (cavando trincheiras ao longo das estradas para impedir a entrada de veículos blindados de transporte de pessoal no município) e greves de pagamento de renda por meio de uma rede de comités democráticos. Os espiões da polícia (“imipimpi” em Zulu) foram expulsos das comunidades utilizando a punição do “colar” administrada pelos tribunais populares: os condenados tinham um pneu de carro cheio de gasolina pendurado no pescoço e incendiado. Isto foi sem dúvida sombrio, mas foi um método necessário dado o destino que aguardava os ativistas se fossem capturados pelo Estado.

Revolução e contra-revolução

O crescimento do movimento não foi sequer interrompido por um “Estado de Emergência” de quatro anos a partir de Junho de 1986, durante o primeiro ano do qual 26,000 pessoas (incluindo Barayi e Mayekiso) foram detidas sem julgamento. A COSATU mais do que triplicou o seu número de membros durante a Emergência. Greves gerais políticas ocorreram pelo menos uma vez por ano entre 1985 e 1994, com a participação de dois milhões de trabalhadores – cerca de um em cada três – em 1990.

Contudo, para derrubar o apartheid e o capitalismo, o movimento revolucionário precisava de quebrar o poder do Estado. O que apontou o caminho a seguir foi uma revolta de milhares de oficiais negros (na sua esmagadora maioria, mas não exclusivamente) que se juntaram ao Sindicato dos Direitos Civis da Polícia e das Prisões, formado depois de um tenente “de cor”, Gregory Rockman, ter exposto o fuzilamento contra manifestantes em 1989.

No entanto, o núcleo do estado permaneceu exclusivamente branco. Teria sido possível fragmentá-lo também, especialmente fazendo um apelo de classe para, pelo menos, neutralizar os recrutas brancos da classe trabalhadora, cansados da guerra, que constituíam a maior parte do exército. Mas eles, e ainda mais 50,000 policiais profissionais brancos e endurecidos, não romperiam fileiras enquanto os trabalhadores e os jovens enfrentassem veículos blindados de transporte de pessoal e armas automáticas armados apenas com pedras, bombas de gasolina e colares.

O movimento precisava desesperadamente de estar devidamente armado sob a liderança de estruturas democraticamente responsabilizáveis que dirigissem as lutas nos locais de trabalho e nos municípios. Isto tornou-se ainda mais urgente quando o Estado começou a construir e armar uma chamada “terceira força” de vigilantes negros, especialmente o “Partido da Liberdade Inkatha” do Ministro-Chefe Fantoche da “pátria” Zulu, Gatsha Buthelezi.

Membros da Marxist Workers Tendency (MWT) do ANC (precursores da atual secção da ASI na África do Sul, o Workers and Socialist Party) organizaram a autodefesa armada. Um desses marxistas, Philemon Mauku, de Alexandra, preso na posse de duas AK-47, foi condenado a três anos de prisão e liderou uma greve de fome na prisão. Ivin Malaza, um líder dos mineiros de East Rand, foi assassinado ao organizar a resistência (eventualmente bem sucedida) dos seus membros aos gangsters do Inkatha.

Tragicamente, porém, os arsenais cuidadosamente montados pelos nossos camaradas e outros foram insuficientes para a tarefa. As massas foram consistentemente derrotadas pelas forças da reação. 800 foram abatidos pelo Inkatha de julho a setembro de 1990 somente no Transvaal. Os trabalhadores exprimiram a sua frustração quando os líderes exilados do ANC não conseguiram enviar para a linha da frente as suas dezenas de milhares de guerrilheiros treinados e bem armados. Até mesmo unidades dentro do país foram mantidas isoladas do movimento, encarregadas de bombardear esquadras de polícia e alvos económicos (frequentemente locais de trabalho sindicalizados).

Após a libertação de Mandela em Fevereiro de 1990, iniciaram-se negociações entre o ANC e o Estado, agravando a situação. As unidades armadas do ANC foram retiradas enquanto as forças da reação intensificaram os seus ataques. O ponto mais baixo talvez tenha sido o massacre de 45 residentes de Boipatong, no Triângulo Vaal, em junho de 1992, cometido por bandidos do Inkatha. Depois disso, o ANC retirou-se das negociações constitucionais, mas não deu resposta. Quando esteve num comício comemorativo para 20,000 pessoas, Mandela foi confrontado com cartazes que exigiam “Dêem -nos armas!”

A inacção do ANC resultou inevitavelmente do processo em que tinham entrado: negociar uma “transferência de poder” no quadro do capitalismo. O apartheid e o capitalismo mundial estavam determinados a manter a essência do poder a todo o custo. Nelson Mandela poderia receber as chaves da casa presidencial, mas armar os trabalhadores ou permitir que o controlo da riqueza da África do Sul passasse para aqueles que a criam nunca esteve na agenda. A Marxist Workers Tendency explicou na altura: “Os líderes do ANC estão no processo de abraçar a classe dominante e de entregar os negros da classe trabalhadora ao capitalismo. Estão a separar-se cada vez mais da classe trabalhadora”.

A luta continua

Incapaz de quebrar o poder da COSATU, o regime do apartheid, apoiado pelas potências imperialistas, chegou a um acordo com os seus dirigentes à revelia das massas, para preservar o próprio sistema em que assentava a sua exploração e opressão.

Este facto foi favorecido pela situação geopolítica única do início da década de 1990. O colapso da URSS e de outros regimes estalinistas parecia apoiar os argumentos de que não havia alternativa ao capitalismo. O poder do imperialismo parecia irresistível para os líderes incapazes de compreender a impossibilidade de alcançar a libertação sem colocar o poder das massas trabalhadoras no centro do movimento.

Fraquezas semelhantes limitaram as campanhas para isolar economicamente o regime. Os trabalhadores sul-africanos apelaram ao apoio dos trabalhadores a nível internacional, rejeitando os argumentos de que isso prejudicaria a maioria negra. Elijah Baryi explicou ao congresso da COSATU que os patrões “nos dizem que são contra o desinvestimento porque os negros morreriam de fome, mas os negros têm passado fome aqui desde que os primeiros colonos brancos chegaram em 1652”.

No entanto, foi ingénuo esperar que o grande capital colocasse os interesses dos trabalhadores oprimidos acima dos seus lucros. Os estados capitalistas também só imporão sanções nos seus próprios interesses imperialistas. Quando o fazem, a elite governante rica dos Estados visados compra invariavelmente a sua saída do impacto, forçando a privação, ou mesmo a fome, à maioria da população. Foi o que aconteceu no Iraque de Saddam e está a repetir-se na Rússia de Putin, o que, em ambos os casos, reforçou a posição dos dois regimes. Por esta razão, as sanções imperialistas não podem ser um método eficaz em que os movimentos de solidariedade confiem.

Frequentemente, a campanha pela solidariedade tem sido deixada a cargo de consumidores individuais boicotarem os produtos e serviços. Embora estes atos instintivos de solidariedade fossem moralmente corretos e servissem para demonstrar e até aumentar a solidariedade internacional, por si só não foram suficientes para isolar o regime. O que era necessário era uma campanha liderada pelos trabalhadores para isolar o apartheid, incluindo uma ação industrial para travar o comércio e uma ação de solidariedade que ligasse os trabalhadores comuns a nível internacional.

Enquanto a liderança do ANC evitava esta estratégia a todo o custo, a Marxist Workers Tendency organizou uma visita ao campo minado da África do Sul por um mineiro britânico em greve, Roy Jones, em 1984. Se esta tática tivesse sido adoptada pelos sindicatos de todo o mundo, poderia ter aumentado decisivamente o ritmo e o volume da luta dos trabalhadores sul-africanos.

Ao seguirem docilmente as regras da diplomacia imperialista, em vez de mobilizarem a força do movimento de massas para derrubar o capitalismo, o Presidente Mandela e os seus sucessores perpetuaram a exploração e a opressão do povo, cuja luta os levou a estas posições vazias de “poder”.

O ANC na África do Sul preside hoje ao crescente empobrecimento da maioria negra. Os ministros do ANC podem conseguir comprar mansões na arborizada “fila dos milionários” de Morningside, mas a três quilómetros do outro lado da auto-estrada M1, 60% dos trabalhadores de Alexandra estão desempregados (o dobro dos níveis de 1994).

A profundidade da traição do ANC foi revelada a 16 de Agosto de 2012, quando o Serviço de Polícia Sul-Africano matou a tiro 34 trabalhadores em greve na mina de platina de Marikana. O inquérito sobre o massacre revelou que o atual presidente do ANC, Cyril Ramaphosa, então diretor da Lonmin, multinacional britânica proprietária da mina, pressionou os ministros exigindo que fossem tomadas medidas contra “estes criminosos”.

Até 1991, Ramaphosa foi o secretário-geral fundador do NUM. Como diretor de uma das maiores empresas mineiras da África do Sul, incitou ao assassinato de mineiros em greve. O movimento de trabalhadores da África do Sul precisa de rejeitar o domínio do ANC e construir o seu próprio partido para completar a luta abandonada a meio caminho em 1994.